Orientações de João Paulo II sobre a Música Litúrgica
Impelido por um profundo desejo «de manter e de promover o decoro da Casa de Deus», o meu Predecessor São Pio X emanava, há 100 anos, o Motu proprio Tra le sollecitudini, que tinha como objeto a renovação da música sacra nas funções do culto. Com isso, ele pretendia oferecer à Igreja indicações concretas naquele setor vital da Liturgia, apresentando-a «quase como um código jurídico da música sacra». Tal intervenção, igualmente, fazia parte do programa do seu pontificado, que ele tinha resumido no dístico: «Instaurare omnia in Christo». A data centenária do documento oferece-me a ocasião para destacar a importante função da música sacra, que São Pio X apresenta seja como um meio de elevação do espírito a Deus, seja como ajuda para os fiéis na «participação ativa nos sacrossantos mistérios e na oração pública e solene da Igreja». A especial atenção que é necessário reservar à música sacra recorda o Santo Pontífice, deriva do fato de que, «como parte integrante da solene liturgia, dela faz parte a finalidade geral que é a glória de Deus e a santificação e a edificação dos fiéis». Interpretando e expressando o sentido profundo do sagrado texto ao qual está intimamente unida, ela é capaz de «acrescentar maior eficácia ao mesmo texto, para que os fiéis […] se disponham melhor para acolher em si os frutos da graça, que são próprios da celebração dos sacrossantos mistérios». Este delineamento foi retomado pelo Concílio Ecumênico Vaticano II, no capítulo VI da Constituição Sacrosanctum concilium sobre a sagrada Liturgia, onde menciona com clareza a função eclesial da música sacra: «A tradição musical de toda a Igreja constitui um patrimônio de inestimável valor, que sobressai entre as outras expressões de arte, especialmente pelo fato de que o canto sacro, unido às palavras, é uma parte necessária e integral da liturgia solene». O Concílio recorda, ainda, que «o canto sacro é elogiado seja pela Sagrada Escritura, seja pelos Padres, seja ainda pelos Pontífices Romanos que recentemente, a começar por São Pio X, sublinharam com insistência a tarefa ministerial da música sacra no serviço divino». Continuando, de fato, a antiga tradição bíblica, à qual o mesmo Senhor e os Apóstolos se mantiveram apegados (cf. Mt 26, 30; Ef 5, 19; Cl 3, 16), a Igreja, ao longo de toda a sua história, favoreceu o canto nas celebrações litúrgicas, oferecendo segundo a criatividade de cada cultura, maravilhosos exemplos de comentário melódico dos textos sagrados, nos ritos tanto do Ocidente como do Oriente… Em diferentes ocasiões, também eu me referi à preciosa função e à grande importância da música e do canto para uma participação mais ativa e intensa nas celebrações litúrgicas, e sublinhei a necessidade de «purificar o culto de dispersões de estilos, das formas descuidadas de expressão, de músicas e textos descurados e pouco conformes com a grandeza do ato que se celebra», para assegurar dignidade e singeleza das formas à música litúrgica… … É preciso sublinhar acima de tudo que a música destinada aos sagrados ritos deve ter como ponto de referência a santidade: ela, de fato, «será tanto mais santa quanto mais estreitamente for unida à ação litúrgica». Por este exato motivo, «não é indistintamente tudo aquilo que está fora do templo (profanum) que é apto a ultrapassar-lhe os umbrais», afirmava sabiamente o meu venerável Predecessor Paulo VI, comentando um decreto do Concílio de Trento e destacava que «se não se possui ao mesmo tempo o sentido da oração, da dignidade e da beleza, a música instrumental e vocal – impede por si o ingresso na esfera do sagrado e do religioso». Por outro lado, a mesma categoria de «música sacra» recebeu hoje um alargamento de significado, a ponto de incluir repertórios que não podem entrar na celebração sem violar o espírito e as normas da mesma Liturgia. A reforma realizada por São Pio X visava especificamente purificar a música de igreja da contaminação da música profana teatral, que em muitos países tinha poluído o repertório e a prática musical litúrgica. Também nos nossos tempos é preciso considerar atentamente, como evidenciei na Encíclica Ecclesia de Eucharistia, que nem todas as expressões de artes figurativas e de música são capazes de «expressar adequadamente o Mistério acolhido na plenitude da fé da Igrejas». Conseqüentemente, nem todas as formas musicais podem ser consideradas aptas para as celebrações litúrgicas. Outro princípio … é o da singeleza das formas. Não pode existir uma música destinada à celebração dos sagrados ritos que não seja, antes, «verdadeira arte», capaz de ter a eficácia «que a Igreja deseja obter, acolhendo na sua liturgia a arte dos sons». Todavia, esta qualidade por si só não é suficiente. A música litúrgica deve, de fato, responder aos seus requisitos específicos: a plena adesão aos textos que apresenta, a consonância com o tempo e o momento litúrgico para o qual é destinada, a adequada correspondência aos gestos que o rito propõe. Os vários momentos litúrgicos exigem, de fato, uma expressão musical própria, sempre apta a fazer emergir a natureza própria de um determinado rito, ora proclamando as maravilhas de Deus, ora manifestando sentimentos de louvor, de súplica ou ainda de melancolia pela experiência da dor humana, uma experiência, porém, que a fé abre à perspectiva da esperança cristã. Os cantos e as músicas exigidos pela reforma litúrgica – é bom sublinhá-lo – devem corresponder também às legítimas exigências de adaptação e de inculturação. É evidente, porém, que cada inovação nesta delicada matéria deve respeitar os critérios peculiares, como a investigação de expressões musicais, que correspondam à participação necessária de toda a assembléia na celebração e que evitem, ao mesmo tempo, qualquer concessão à leviandade e à superficialidade. É necessário, portanto, evitar, em última análise, aquelas formas de «inculturação», em sentido elitário, que introduzem na Liturgia composições antigas ou contemporâneas que possuem talvez um valor artístico, mas que induzem a uma linguagem realmente incompreensível… Entre as expressões musicais que mais correspondem à qualidade requerida pela noção de música sacra, particularmente a litúrgica, o canto gregoriano ocupa um lugar particular. O Concílio Vaticano II reconhece-o como «canto próprio da liturgia romana» à qual é preciso reservar, na igualdade das condições, o primeiro lugar nas ações litúrgicas celebradas com canto em língua latina. São Pio X ressaltava que a Igreja «o herdou dos antigos Padres», «guardando-o ciosamente durante os séculos nos seus códigos litúrgicos» e ainda hoje o «propõe aos fiéis» como seu, considerando-o «como supremo modelo de música sacra». O canto gregoriano, portanto, continua a ser também hoje, um elemento de unidade na liturgia romana. Como já fazia São Pio X, também o Concílio Vaticano II reconhece que «os outros gêneros de música sacra, e especialmente a polifonia, não estão excluídos de modo algum da celebração dos ofícios divinos». É preciso, portanto, avaliar com atenção as novas linguagens musicais, para recorrer à possibilidade de expressar também com elas as inextinguíveis riquezas do Mistério reproposto na Liturgia e favorecer assim a participação ativa dos fiéis nas diversas celebrações… Da boa coordenação de todos – o sacerdote celebrante e o diácono, os acólitos, os ministros, os leitores, o salmista, a schola cantorum, os músicos, o cantor e a assembléia – decorre aquele clima espiritual que torna o momento litúrgico realmente intenso, participado e frutífero. O aspecto musical das celebrações litúrgicas, portanto, não pode ser relegado nem à improvisação nem ao arbítrio de pessoas individualmente, mas há de ser confiado a uma direção harmoniosa, no respeito pelas normas e as competências, como significativo fruto de uma formação litúrgica adequada. Também neste campo, portanto, se evidencia a urgência de promover uma formação sólida, quer dos pastores quer dos fiéis leigos. São Pio X insistia particularmente sobre a formação musical do clero. Uma insistência neste sentido foi reforçada também pelo Vaticano II: «Dê-se-lhes grande importância nos Seminários, nos Noviciados dos religiosos e das religiosas e nas casas de estudo, assim como noutros institutos e escolas católicas». Esta indicação ainda deve ser plenamente realizada. Portanto, considero oportuno recordá-la, para que os futuros pastores possam adquirir uma sensibilidade adequada também neste campo. Nesta obra formativa, um papel especial é desempenhado pelas escolas de música sacra, que São Pio X exortava a apoiar e promover, e que o Concílio Vaticano II recomenda a instituir onde for possível. Fruto concreto da reforma de São Pio X foi a ereção em Roma, em 1911, oito anos depois do Motu proprio, da «Pontifícia Escola Superior de Música Sacra», que em seguida se tornou «Pontifício Instituto de Música Sacra». Além desta instituição acadêmica, já quase centenária, que desempenhou e ainda desempenha um serviço qualificado na Igreja, existem muitas outras Escolas instituídas nas Igrejas particulares que merecem ser apoiadas e incrementadas para um melhor conhecimento e execução da boa música litúrgica. Dado que a Igreja sempre reconheceu e favoreceu o progresso das artes, não é de se admirar que, além do canto gregoriano e da polifonia, admita nas celebrações também a música moderna, desde que seja respeitosa do espírito litúrgico e dos verdadeiros valores da arte. Portanto, permite-se que as Igrejas nas diversas Nações valorizem, nas composições destinadas ao culto, «aquelas formas particulares que constituem de certo modo o caráter específico da música que lhes é própria». Na linha do meu Predecessor e de quanto se estabeleceu mais recentemente na Constituição Sacrosanctum concilium, também eu, na Encíclica Ecclesia de Eucharistia, procurei abrir espaço às novas formas musicais, mencionando juntamente com as inspiradas melodias gregorianas, «os numerosos e, freqüentemente, grandes autores que se afirmaram com os textos litúrgicos da Santa Missa». O século passado, com a renovação realizada pelo Concílio Vaticano II, conheceu um desenvolvimento especial do canto popular religioso, do qual a Sacrosanctum concilium diz: «Promova-se com grande empenhamento o canto popular religioso, para que os fiéis possam cantar, tanto nos exercícios de piedade como nos próprios atos litúrgicos». Este canto apresenta-se particularmente apto para a participação dos fiéis, não apenas nas práticas devocionais, «segundo as normas e o que se determina nas rubricas», mas igualmente na própria Liturgia. O canto popular, de fato, constitui um «vínculo de unidade, uma expressão alegre da comunidade orante, promove a proclamação de uma única fé e dá às grandes assembléias litúrgicas uma incomparável e recolhida solenidade». No que diz respeito às composições musicais litúrgicas, faço minha a «regra geral» que são Pio X formulava com estes termos: «Uma composição para a Igreja é tanto sacra e litúrgica quanto mais se aproximar, no andamento, na inspiração e no sabor, da melodia gregoriana, e tanto menos é digna do templo, quanto mais se reconhece disforme daquele modelo supremo». Não se trata, evidentemente, de copiar o canto gregoriano, mas muito mais de considerar que as novas composições sejam absorvidas pelo mesmo espírito que suscitou e, pouco a pouco, modelou aquele canto. Somente um artista profundamente mergulhado no sensus Ecclesiae pode procurar compreender e traduzir em melodia a verdade do Mistério que se celebra na Liturgia. Nesta perspectiva, na Carta aos Artistas escrevo: «Quantas composições sacras foram elaboradas, ao longo dos séculos, por pessoas profundamente imbuídas pelo sentido do mistério! Crentes sem número alimentaram a sua fé com as melodias nascidas do coração de outros crentes, que se tornaram parte da Liturgia ou pelo menos uma ajuda muito válida para a sua decorosa realização. No cântico, a fé é sentida como uma exuberância de alegria, de amor, de segura esperança da intervenção salvífica de Deus» (Ed. port. de L’ Osserv. Rom. n. 18, pág. 211, n. 12). Portanto, é necessária uma renovada e mais profunda consideração dos princípios que devem estar na base da formação e da difusão de um repertório de qualidade. Somente assim se poderá permitir que a expressão musical sirva de modo apropriado a sua finalidade última, que «é a glória de Deus e a santificação dos fiéis». Sei ainda que também hoje não faltam compositores capazes de oferecer, neste espírito, a sua contribuição indispensável e a sua colaboração competente para incrementar o patrimônio da música, ao serviço da Liturgia cada vez mais intensamente vivida. Dirijo-lhes a expressão da minha confiança, unida à exortação mais cordial, para que se empenhem com esmero em vista de aumentar o repertório de composições que sejam dignas da excelência dos mistérios celebrados e, ao mesmo tempo, aptas para a sensibilidade hodierna… Ainda no plano prático, o Motu proprio do qual se celebra o centenário, aborda também a questão dos instrumentos musicais a serem utilizados na Liturgia latina. Dentre eles, reconhece sem hesitação a prevalência do órgão de tubos, sobre cujo uso estabelece normas oportunas. O Concílio Vaticano II acolheu plenamente a orientação do meu Predecessor, estabelecendo: «Tenha-se grande apreço, na Igreja latina, pelo órgão de tubos, instrumento musical tradicional e cujo som é capaz de trazer às cerimônias do culto um esplendor extraordinário e elevar poderosamente o espírito a Deus e às coisas celestes». Deve-se, porém, reconhecer que as composições atuais utilizam freqüentemente modos musicais diversificados não desprovidos da sua dignidade. Na medida em que servem de ajuda para a oração da Igreja, podem revelar-se como um enriquecimento precioso. É preciso, porém, vigiar a fim de que os instrumentos sejam aptos para o uso sacro, correspondam à dignidade do templo, possam sustentar o canto dos fiéis e favoreçam a sua edificação. Desejo que a comemoração centenária do Motu proprio Tra le sollecitudini, por intercessão do seu santo Autor, conjuntamente com Santa Cecília, Padroeira da música sacra, sirva de encorajamento e estímulo para aqueles que se ocupam deste importante aspecto das celebrações litúrgicas. Os cultores da música sacra, dedicando-se com impulso renovado a um sector de relevância tão vital, contribuem para o amadurecimento da vida espiritual do Povo de Deus. Os fiéis, por sua vez, expressando de modo harmônico e solene a sua própria fé com o canto, experimentarão cada vez mais profundamente a riqueza e harmonizar-se-ão no esforço em vista de traduzir os seus impulsos nos comportamentos da vida quotidiana. Poder-se-á, assim, alcançar, graças ao compromisso concorde dos pastores de almas, dos músicos e dos fiéis, aquilo que a Constituição Sacrosanctum concilium qualifica como verdadeira «finalidade da música sacra», isto é, «a glória de Deus e a santificação dos fiéis». Nisto, sirva também de exemplo e modelo a Virgem Maria, que soube cantar de modo único, no Magnificat, as maravilhas que Deus realizou na história do homem. Com estes bons votos, concedo-vos a todos a minha afetuosa Bênção. Dado em Roma, junto de São Pedro, no dia 22 de Novembro de 2003, memória de Santa Cecília, no vigésimo sexto ano de Pontificado. Papa João Paulo II ... (continuação)